sábado, 24 de outubro de 2015

Zero

Fechei as janelas e procuro não fazer barulho. Meus passos eu piso com cuidado, ninja, cautela, sombra. Que ninguém saiba que existo. Desliguei a campainha, os telefones, me desconectei dos meios onde todos se refestelam ao sol digital RGB, exibindo-se, trocando elogios e convites, iludindo-se, consumindo, mastigando uns aos outros com palavras que mentem, poses, closes.

Eu dentro de mim.
Zerar tudo é uma bifurcação. 
Você pode pegar o pouco de dinheiro que te resta e sumir no mundo, mudar de nome, cortar os cabelos, conseguir um emprego comum num lugar comum entre pessoas comuns e inventar uma nova história futura, mentir sobre a vida passada. Escrever uma ficção sobre tudo o que já fora, de verdade, uma ilusão. A vida que a gente vive, que a gente interpreta.
Ou você pode sumir pra dentro, se encolher e ir ficando pequena, pequena, pequena até ser uma formiga, uma ameba, uma poeirinha no canto do quarto. E daí você morre e se assume um fantasma idiota que não sabia de nada, que não entendeu o que tinha que ser feito, dito, forjado. Um fantasma idealista e tonto que traiu o pacto do grande grupo, não pintou as unhas. Nem mesmo pintou as unhas!!

Fechei as janelas e é como se eu estivesse numa nave solta no espaço, fugindo, navegando, sumindo na eternidade antes que alguém grite meu nome e outro alguém traga a camisa de forças e me culpem porque não aceitei a vida como ela é.

Eu dentro de mim sinto gostos e na minha nave tem o cheiro de outra pessoa que passou por aqui e eu vou ter que suportar lembranças porque se eu abrir as janelas e arejar, o insuportável vai me escapar. Um detalhe vai desmaiar ao sol, um resto de perfume vai evaporar, um som vai se misturar aos sons que vem da rua onde habitam tons que me sangram.

Procuro a mochila grande vermelha, mas lembro que eu doei para um casal de jovens moradores de rua junto com muitas coisas que eu tinha e me eram caras, então eu tinha que excluir da minha nave pois tudo o que nos é caro um dia manda a conta e eu já não posso pagar. Eu não consigo mais pagar.

Encontro uma mala. Mas pra quê necessitaria de malas quando só preciso sumir. Ninguém caminha até virar fumaça levando uma mala de rodinhas. Não, pra virar pó você não leva nada, você vai pelada, você sorri lágrimas quentes, respira, em frente, primeiro devagar depois com mais firmeza até que você se solta no ar e voa e já nem se importa com o que perdeu pois você já não se arrepende de ser diferente e, afinal, quem disse que a gente perde quando o que a gente tem nunca foi da gente?


]bw[





sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Capitanias Hereditárias

Conhecer eu sempre quero. As trocas sim, escambos.
Mas não curto as bandeiras enterradas nas fronteiras. Meus orgulhos são das subjetividades, não dos sangues derramados nas geografias. 
Por exemplo, nunca entenderei porque eu deveria ter orgulho de ser gaúcha ou terráquea. Tudo são contingências. Nasci neste planeta por uma ínfima questão temporal, espacial, dimensional. Sensacional...
Mas a gente é o que é até aceitar incorporar novos seres e saberes admitindo que   de nada adiantam as cercas porque nossa contribuição é apenas morrer nascer e transmutar. Adubo. Então essa coisa de bater no peito e falar de tradição é como colocar os sentidos numa caixa e entoar um hino monocórdio no escuro.
O homem caminhante caminhava caminhava até que parou, inventou um nome e desenhou linhas invisíveis. Mas nem todo mundo quer saber disso, nem todo o ser acha que deu certo isso de sair da aventura pra se esconder num apartamento, nem todo mundo quer. Eu, pelo menos, não dou valor nenhum. E até acho que se desinventarmos Deus a gente reencontra os caminhos da liberdade, soltos por aí. Mas isso é outra história, isso de reinventar a história. É pra depois que o mundo explodir, implodir, queimar vivo meio morto de tanto os Deuses que o homem estacionado inventou matarem todas as pessoas humanas e até as não humanas - que não tem nada a ver com isso - e sobrarem uns 6 ou 7, sete dias depois do final, rotos  os 7 sussurrando: - Então era isso... então era isto.
Quer saber? Isso que escrevo, na verdade, todo mundo já sabe pelos filmes que fizeram inspirados nos livros que escreveram sobre épocas ocultas, dedos que apontam, livros santos, cidades ardendo e senhores barbudos, crianças divididas, mulheres vendidas.
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quarta-feira, 21 de outubro de 2015

A cultura do estupro

Estive lendo tuites nojentos de homens de 40 anos sobre uma menina de 12 que participa de um desses mil programas de culinária que infestam os canais a cabo. Os infelizes se acham machos ruminando o quanto os excita a ideia de transar com uma criança e só espero que suas mães morram de vergonha e náusea por terem criado tais lixos.
Em meu blog já postei alguns textos sobre como foi ser uma menina de 12, 13, 15, 18, anos e depois uma mulher diante de uma sociedade que se orgulha do estupro confundindo os valores, se machucando, humilhando e sangrando as suas filhas e mães.
Meninas como eu, muito próximas de mim, sofreram estupro e eu as vi, olhos parados, cabisbaixas, no hospital... Escapei da agressão direta por pouco, por ter pernas rápidas, cérebro ligeiro, por ser desconfiada ...
Mas passei a vida tentando ser forte, a enfrentar toda a sorte de trauma na relação doentia que nosso país tem com suas mulheres. Se tu não aceita ganhar menos que um cara que faz a mesma coisa, se tu não aceita um namorado cretino, se tu não quer transar sem ter vontade, se tu não quer se vestir pra agradar um imbecil, se tu faz a música e não é a fã, se tu não é a mulherzinha na parte das mulherzinhas no churrasco da firma, se tu manda a sociedade se foder vão dizer que tá na TPM, que é mal comida, que é louca.
Mas bem, dentre as guerras que enfrentei sozinha diante da sociedade do pau está, inclusive, a agressão obstétrica, um dos traumas mais terríveis na vida de uma mulher num país como o Brasil que se diz livre porque não usamos burca - me pergunto porque a obrigação do biquíni enfiado na bunda é menos escravidão do que uma burca.
Então amores, não me venham pedir que seja menos garota enxaqueca. Eu sou uma mulher livre tentando ter paz neste planeta, neste país onde moças de classe média que vivem para agradar um homem coxinha de tênis comprado em free shop se acham mulheres melhores que funqueiras que sustentam filhos sozinhas desde os 13 anos de idade porque foram abandonadas grávidas. Um país catador de moedas e chupador de paus gringos. O paraíso do turismo sexual.
De verdade - e penso isto todo santo dia quando enfrento a vida sem me vender -, o Brasil é um país racista, machista, xenófobo, homofóbico.
Nosso país fede a estupro, fede a sangue seco. Nosso país se orgulha de viver contabilizando os centímetros de um pênis.
Assinado: A rapariga mais enojada da cidade.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

O machismo começa na criação.

O machismo como cultura termina na mãe que cria. Nem todo homem conseguirá libertar-se do machismo feminino porque, no mais das vezes, ignora outra realidade possível. 
Porém, onde a mãe comunicar o fundamental enquanta amamenta, a sociedade se transformará, o homem assimilará, se orgulhará e vivenciará o inevitável segredo feminino dentro de si. O equilíbrio do ser.
De coronéis cretinos a pais abusadores, maridos que matam e chefes que assediam, homofóbicos covardes, meninas objeto, mães que perpetuam a doença social, todo o machista, toda a machista - exceto, talvez, os humanos com desvios mentais - possivelmente não o fosse se tivéssemos a sorte de ele ter sido criado por uma mãe feminista.
Mesmo num lar opressivo, me parece que a mulher que embala a criança tem um poder de mudar o mundo, mas desconhece ou teme tal força.
Nesse sentido, é provável que as crianças das famílias sem distinção de gênero em suas responsabilidades, as famílias com dois pais ou duas mães, talvez consigam gerar crianças mais livres e leves, por estarem alheias aos exemplos de desigualdade.
A obrigação de ser uma moça machista, o orgulho de ser um moço machista é pior do que uma condição meramente ultrapassada e preguiçosa. Assumir um papel machista é pactuar com uma sociedade que sente dor.


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