sexta-feira, 17 de junho de 2016

No baile dos vampiros.

A morte nos parece um castigo desde que inventamos religiões, então ela passou a ser o melhor modo de uns controlarem os outros.
Dizem que antes da inventarmos esse Deus à nossa imagem e semelhança, você matava pra comer e não pra exibir uma cabeça em cima da mesa ou um corpo em cima da cama ou um enforcado numa cadeia, um corpo estirado num beco sujo, desfigurado numa cruz a título de troféu.
Me parece que o caminho do significado de amor se confunde com a trilha que nos leva até a morte. Quanto mais longe do final, mais perto estamos do egoísmo e de todas as nossas rasas aventuras centradas no umbigo. Quanto mais próximos do término, mais sensíveis. Dizem...
Não que seja uma regra, mas observo que as pessoas na iminência da morte por estarem muito doentes ou velhas ou suicidas ou a mercê de algozes, ganham o dom de ver com mais clareza o que realmente importa e se desnudam mais e perdem mais as armaduras e se misturam mais com o simples, menos com o simplório. É como se você passasse a vida sendo um idiota que não aproveita as vivências e deixasse pra, do nada, tornar-se
um sábio assimilador das verdades mais complexas ao submergir no colapso
dos últimos meses, dias ou segundos, dependendo do caso.
Há quem peça perdão, há quem aprenda a perdoar, há quem apenas goze pela primeira vez na vida justo na hora da morte, que é nascer ao contrário mesmo que não exista um outro lado.
Último suspiro me lembra orgasmo, daí a compreensão do amor se estabelece na proximidade da morte.
É mais comum identificarmos bullying entre grupos muito jovens, como é mais comum vermos linchamentos morais entre pessoas adultas e-ou idosas da facção consumista - onde consumismo é sinônimo de incompetência e ingenuidade, logo infantil.
Um parentese. Não quero mais dizer que os adultos mudérnos estão infantilizados porque sei que pode parecer que não valorizo a infância, quando acho fundamental ser criança pela vida a fora. Então, hoje eu resolvi que adultos consumistas e obtusos não são tão infantis assim, eles querem ser jovens e bancam os abobadinhos viciados em posses mas, ao invés de crianças, são apenas cretinos e superficiais. Ponto.
A morte está perto.
Mas há toda uma publicidade que fala de um futuro banhado a ouro e eterna juventude, fazendo os mais despreparados (aqueles que eu vinha considerando infantilizados) crerem que podem escapar de morrer ali na esquina sem prévio aviso. Talvez todo este produto chamado dinheiro não seja, afinal, para comprar um terreno no céu, mas para pagar propina ao anjo da morte.
A parte estas infantilidades (ops! cretinices) cada vez fica mais necessária a proximidade do fim para que o grande corpo, essa verdade da qual somos parte e não centro, tente se salvar de um ocaso sem poesia. Isso mesmo, talvez a morte seja um poema tão libertador que foge das rimas.
Pode ser tarde, pode dar tempo... Quem sabe o modo de disseminarmos o amor essencial e não aquele vendido nos sites de compras, seja o reconhecimento e a delícia de morrer um pouco todos os dias ao invés de deixar pra levar o susto no momento derradeiro como quem não sabe que ele viria. E virá.
Deveríamos é cantarolar sobre o outro lado do começo para os bebês, cantar sobre o amor que vem com a proximidade da morte como se falar do fim pra quem está no começo fosse antes uma obrigação e nunca uma heresia. A descoberta e familiaridade com o fim ao invés da fuga.
É que talvez, sentindo a morte como o espectro mais presente, não queiramos tanto matar o outro, mas sim viver em nós mesmos o suficiente para vivermos todos enquanto é pra se viver.
A cada dia vamos em direção ao ponto final fugindo como o diabo foge da cruz para um impossível reencontro com aquilo que nunca voltará. Vamos deixando escapar o amor que ensina a não matar aos poucos a vida que está ao nosso redor cheia de mortes inúteis em nome da imortalidade.
Somos, na vida eterna, o sadismo dos meninos que machucam pequenos animais e dos normais que apedrejam os diferentes; somos aqueles que participam de linchamentos sem saber o que fez o açoitado pois o que vale é o quanto nos excita o cheiro de sangue.
Morrer é a primeira necessidade da vida, morrer feliz a cada instante pelo amor mais sublime ao invés de nos matarmos a cada momento em nome do ódio.
Viver em busca da eterna juventude que não entende o valor da morte é como comprar ingresso para um infinito baile dos vampiros.
]biAhweRTher[

quarta-feira, 8 de junho de 2016

|O FILME SOBRE JÚPITER APPLE|

|||diário da diretora|||

"O GAROTO DE JÚPITER"
Lá pelos 10 anos, Flávio já tinha um violão. Segundo a mãe, dona Iara, ele não dava tanta atenção para o instrumento quanto para os vinis de rock que começou a colecionar cedo como todo o menino de classe média em Porto Alegre no final dos anos 70. Nessa época, parece que a família ainda não percebia que aquele não era um garoto comum.
Por volta dos 12 anos, percebendo um maior interesse pelo violão, sua avó resolveu pagar um curso para que aprendesse música, mas após a quarta aula o menino chegou em casa insatisfeito e declarou:
- Mãe, não quero aprender a tocar "Parabéns a Você", eu quero é tocar Beatles!!!
E assim foi. Após abandonar as aulas, ele logo estaria compondo. O pai, um professor de Física meio distante dos gestos de carinho, já então divorciado da mãe, percebendo o dom ou pela insistência do filho, o presenteou com uma guitarra. 
No colégio Rosário, as notas do menino que amava os 4 garotos de Liverpool despencaram para o subsolo do prédio onde morou toda a infância na rua Cauduro, enquanto sua alma flutuava em direção a um planeta que um dia ele chamou de Júpiter, onde aprendeu sozinho a cantar e tocar vários instrumentos; passou por São Paulo, todo o país, Londres e Paris entre muitas mulheres e grandes parceiros de hits radiofônicos; cambaleando em becos sujos, pulsando em palcos, embriagado em lugares do caralho e quartos de hotel.... O garoto por vezes vinha visitar a Terra para homenagear este planeta, até que, numa tarde, nunca mais aterrissou deixando todos aguardando o seu último show.
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DIÁRIO, 07 de junho de 2016
Aniversário do meu pai que também não mora mais aqui. 
Muito frio na tarde de sol, meu lindo chapéu de brechó - sou uma porto alegrense! . Saio ansiosa, prestes a começar mais um trabalho que talvez um dia faça parte do mosaico histórico do pólo criativo mais provinciano do país.
Meu encontro é com a mãe de Flávio Basso no Ateliê Bestiário, um dos lugares da cidade onde sou artista residente. O ateliê fica dentro da Marquise 51, nada menos que seu selo e um dos últimos lugares onde Júpiter Maçã tocou. Pocket show antes da falência múltipla de seus órgãos.
Eu e dona Iara namoramos por cerca de dois meses pelo telefone e redes sociais até nos encontrarmos pessoalmente. Queria eu que nada fosse às pressas, tudo mais sensorial do que obrigatório.
Cheguei a comentar o projeto superficialmente com amigos meus e de Flávio, mas não queria começar nada oficial antes de criar uma intimidade com sua mãe pois algo me dizia
que ali estava o meu argumento, o elo perdido entre a minha dúvida e o meu próprio olhar definitivo. O que conheci do Júpiter é algo entre nós e parcial, assim como foi com cada uma das outras centenas de pessoas que passaram por sua tumultuada vida, a maioria bem mais íntima dele do que eu. Sua mãe sabe do começo e do fim, onde se fez muito presente por iniciativa dele nos derradeiros dois anos. O miolo da história somos todos nós e seu público, como numa lenda.
Desde a noite de sua morte eu sabia que iria fazer o filme mas não entendia ainda como isto se daria. Um documentário? Uma ficção? 
Nada certo dentro de mim além da incerteza. 
Eu só sabia que não queria contar um conto sobre uma lenda urbana, mas sobre uma alma inquieta e criativa, mais humana do que célebre.
A conversa de horas foi esclarecedora como uma luz no final do túnel onde um menino-homem está sentado em um piano e sonha que vai fazer um filme.
Entendi que farei um documentário ficcional. Depois de meses com uma profusão de ideias feito a hora do rush, relaxei. Percebi os tons, os sons, a primeira cena, a cena final. Visualizei o tempo correndo nos 47 anos do menino Júpiter.
Cheguei em casa, sentei no computador, fiz alguns contatos para primeiras entrevistas e em duas horas rascunhei 3 cenas, direto, sem tomar água, sem fazer xixi, sem tirar as botas, sem ligar o ar condicionado neste outono invernal a 7 graus sendo que odeio frio. Aqueceram-me as ideias.
O nome do filme é: "O Garoto de Júpiter"
Me parece fácil de entender. mas caso alguém não compreenda, ao longo do processo todos terão oportunidade.
biAh weRTher

segunda-feira, 6 de junho de 2016

A mulher, o homem e o neologismo.

Sou feminista e pago o preço, mas me incomodo quando
alguém me chama de "lutadora". Eu não quero briga, sou pela paz. Quando sofro com o machismo não entendo como uma luta e sim como uma agressão unilateral da qual sou vítima e devo me defender e ser defendida pela justiça, conscientização, uma sociedade com acesso à cultura e educada para a igualdade e não para a guerra.
É uma fronteira translúcida, pode ser uma utopia
e alguém menos sensível pode achar bobagem, mas pra mim é uma diferença brutal.
Ok, eu xingo o Bolsonaro e não consigo evitar o ódio de estupradores e seus defensores; eu sofro de TAG por conta de abusos sofridos por parte de homens com os quais me relacionei ou trabalhei e estes sentimentos tem a ver com guerra e, por isso mesmo, eu preferiria não senti-los. Não os exulto nem me orgulho quando sou bélica porque isto é consequência dos traumas causados por uma sociedade que promove a competição e desigualdade nos relacionamentos.
As palavras são muito importantes pra algumas mulheres, mesmo estando fora de moda a leitura e na moda escrever sobre moda e nada mais.
Então - alguém vai me odiar por isto - também não utilizo a expressão "empoderamento". Poder pra mim pode virar um monstro e o seu derivado, ainda que positivo, pode ser deturpado por uma maioria, como toda a palavra solta numa passeata ou em grupos específicos.
O símbolo da conscientização tem que ser simples, direto. Uma palavra que gere outras e não uma que tente dar um novo sentido ao que massacra: poder.
O novo sentido está nas nossas ações e o título desta novidade deve ser novo.
Poder não tem como ser sinônimo de igualdade, poder
é um palavrão, assim como guerra. Dói até pensar, envergonha até sussurrar porque lembra tudo o que milhões e milhões sofreram e sofrem em nome do vício que alguns tem pelo poder.
Por exemplo, percebo que as mesmas pessoas que adotaram o empoderamento como palavra de ordem não acreditam que exista um homem feminista e eu acho que sim e que as palavras criam uma força de cabo de guerra quando deveriam unir.
Sim, você acha que estou falando de temas pequenos quando há mulheres sendo espancadas bem agora. Me desculpe, não deixo de pensar em tudo o que estamos vivendo, cada uma de nós há séculos e séculos. Apenas não acredito em heróis e heroínas e que um homem não pode querer sinceramente a liberdade de uma mulher.
Mais além, as mesmas pessoas que acreditam que homens não podem ser feministas, defendem o direito das mulheres machistas cometerem as piores ofensas à outras mulheres, gerarem e educarem o pior tipo de homem, porque elas são vítimas cegas que ainda não "desconstruíram" o machismo no qual vivem aprisionadas, coitadas... vítimas defendendo seus algozes, escravizando outras mulheres através de seus filhos que elas criam pra manterem a escravidão.
É como se algumas de nós já começassem a acreditar que sim, o feminismo é o contrário do machismo, quando não é. Como se homens e mulheres estivessem destinados a serem inimigos, quando não estão. É tudo uma questão de cultura, educação e união pela mudança dos sentidos.
Eu não, não perdoo e não vejo nenhum coitadismo em senhoras que batem panelas, em mulheres maldosas tomadas pelo preconceito, em esposas de eduardos cunhas, em escravistas odiadoras da liberdade alheia, em pastoras gritonas, em mulheres que riem e culpam uma menina da periferia estuprada por 33 inimigos.
Há vítimas entre mulheres que não desconstruíram o machismo e há mulheres entre mulheres que são seres humanos desonestos e machistas porque lhes parece conveniente.
Assim como há homens que estão num processo de desconstruir
o machismo porque percebem que não lhes será tirado nada vital se conviverem com a igualdade de gêneros.
E sobre o meu desconforto em utilizar a expressão empoderamento quando falo da consciência de que eu sou digna de respeito e dona do meu corpo e dos meus pensamentos... Não há muito o que explicar, apenas acho um vocábulo pouco feminino e com uma vogal que fecha os lábios num círculo apertado. Expressões abertas me parece que unem mais. Coisas como liberdade, vontade, amizade, igualdade e palavras que ainda não foram inventadas, estarão livres e únicas e não serão derivadas de outras costelas.

]bw[