MOSCAS VOLANTES

MOSCAS VOLANTES  quem sabe a última ou o sexo oral.

Rita sentada diante do lago. Os dois cisnes negros juntam os pescoços e desfilam. Ela está explodindo, também os trovões explodem. 

Preciso tanto terminar minha saga (quero-queros exultam e outros pássaros também), quero tanto um fim pra mim.
Ela chora, mas Rita chora por qualquer bobagem. Não aguento mais isso, não sinto meu corpo, não sinto minhas mãos. Há dias em que acordo em algum lugar qualquer e minhas extremidades estão dormentes e tento entender onde estou. Ao menos onde já que o por que seria pedir demais. Queria tanto uma conclusão!

Deita na relva, tudo de novo. Fecha os olhos.

- Lembra aquela vez  no começo da história, quando  tu decepou sem querer o dedo do pé e, de tão louca, tu nem viu e saiu na noite e dançou com aqueles coturnos e eu fiquei em casa fazendo faxina no sábado a noite?

Ela abre os olhos. Em pé, diante dela, num tamanho gigante, está o homem mais lindo da cidade. 

Estremece:
- Sim, nunca esqueci. Tu era o carinha perfeito, tanto que um dia eu cheguei bêbada as 3 da manhã e havia um caminho de pétalas até a cama e ali tu dormia diante da TV com uma champanhe aberta desde as onze da noite e eu na rua, esquecida de ti!

- Não me tortura com os fatos tristes e da tua falta de amor. Lembra que quando tu chegou em casa e tirou as botas tinha sangue na meia e eu tive que ir pra lixeira do prédio procurar teu dedo e daí nos o costuramos?
- Nós o costuramos...

Ele senta ao lado dela. É a tarde mais linda e um bom momento pra terminar uma história que nunca termina.
- Sabe, diz ela, não aguento mais minha vida. Não me aguento!  Levo trapos  para tapar os espelhos por onde ando.
- Tsc, tsc... Sempre a mesma.

Se beijam como se isto fosse um romance, coisa que não é. Ele começa a tirar as roupas de Rita.
- Tu ainda fala coisas quando tá transando?
- Depende.
- Eu acho legal. Detesto mulheres mudas, parece que estão fazendo alguma obrigação.
- Sei lá. Não penso enquanto eu transo.
Ele para de chupar os seios de Rita, olha os olhos dela rindo muito:
- Rita, tu não pensa é nunca!

Gargalhadas.  Ela suspira no ar fresco do final de tarde. Tinha esquecido que ele transa muito bem.
- Que pena que tu costurou o umbigo, era parte do caminho.
Rita abre as pernas, ele abre Rita:
- Faz tempo que tu não goza na minha boca.
- Tu fala muito.
Ele se cala e faz coisas, meche, lambe e chupa através do tempo. Rita goza enquanto uma formiga morde sua coxa e a chuva vem. 

- Rita, ainda não é o final, não te ilude.
Ele vai embora, é noite. As aves sumiram. 


- Que pena, ela murmura, não é mesmo o meu fim.

]bw[
18 set 2015




MOSCAS VOLANTES 03

Rita e o menino cego vegetariano.
Os dois caminham entre os transeuntes apressados. Ela brinca de equilibrista no cordão da calçada. O menino tateia as paredes dos prédios, para e grita:
- Você percebe que não sei onde estou? Vem me ajudar!
- Menino! Não espera eu morrer pra decidir me perguntar, porque daí eu vou estar com os anjos, eu estarei com as estrelas a bailar, numa outra dimensão onde nada se sabe sobre limites e proibição, sobre vergonha e religião, nada disso haverá!
- Rita, vai te foder! Me ajuda!
Rita vai até o menino, pega sua mão e se vão entre as pessoas, os carros, as placas, os sons, as lojas, as construções, o tempo, o espaço e as demolições.
- Teu cabelo está com cheiro de flor, ele diz.
- Lavei com sabonete íntimo.
- Ficou meio pastososo...
- É, ajuda a dar forma.
As horas passam, a cidade acaba e eles andando na estrada.
- Eu queria que um dia você crescesse, ela diz.
- Eu queria que um dia você crescesse, ele responde.
- São coisas diferentes. Você terá 12 anos pra sempre por uma questão genética. O meu caso é mental. Por exemplo, você sempre falará com voz de criança, já eu um dia direi coisas infantis com voz de gente velha.
- Hum... verdade...
A estrada na escuridão.
- Menino, você segue caminhando por aqui. Vai sempre, não para por nada.

Ele obedece. Rita volta pelo caminho de onde vieram até encontrar as luzes da cidade, as ruas e calçadas, os bêbados e as putas, as pessoas com caixas na cabeça, os equilibristas nos semáforos, os homens de gravata sentados em restaurantes fechando seus negócios entre palitos de dentes.
Ela vai a uma festa. No fundo, à direita, uma banda tosca toca pra ninguém. Rita fica ali, esperando. No final do show o vocalista acende um baseado. Ela não escuta nada do que ele diz, mas Rita nunca escuta nada do que os caras dizem. Transam no apartamento dele e fazem qualquer coisa sem importância por uns dias. Numa certa madrugada ela sai e volta para a caminhada.

Dias correm até que um gigante pêndulo surge a sua frente. Pra lá e pra cá, prá lá e prá cá, na encruzilhada, entre oferendas. Velas, sidras e pipocas. É ali que reencontra o menino cego vegetariano, sentado, esperando:
- Desta vez nem demorou, ele sorri.
Dão as mãos.
- Vamos pra casa?
- Topo!
]bw[
14 setembro 2015





Moscas Volantes e O conto dos anjos

Rita seguia o caminho errante.
Morreu, nasceu, coloriu as crinas dos cavalos, rasgou as bandeiras, visitou um cemitério no interior do Uruguai, descansou nas armadilhas e desembarcou, finalmente, em 2015.
O mundo estava outro, o mundo estava louco! Choviam navalhas e, à noite, todos bebiam drinques feitos de olhos, línguas e bílis e riam e babavam e rezavam e clamavam, inquietos e barulhentos.
Arranjou um emprego! Regadora de campos minados e cuidadora da fogueira nos arredores da cidade. Lá se apaixonou pelo rapaz que consertava as minas e guardava segredos. De Rita, ele soube tudo. Sorriso encantador e olhares com luzinhas dentro, nas longas tarde do campo minado, ele perguntava e perguntava, se deleitava com as respostas mas de si nada revelava.
Nas noites de sábado, ela ficava só, mantinha o fogo sempre aceso, tinha medo. Escutava os fantasmas do passado e jantava suas dúvidas, brindando com os besouros.
Naquele ano, muito se falou em Deus e o namorado de Rita falava também. Mentia e orava a Deus, egoísta citava Deus, faltava e chamava Deus, se esquecia e esperava por Deus.
Num certo final de semana, Rita se distraiu. Esqueceu de manter acesa a fogueira. Resolvida a voltar para os caminhos do tempo, levou  apenas o cantil com o que restara da água no regador. Deixou secarem as minas. Asas no deserto.
Na segunda feira, quando chegou no campo de trabalho para fazer a manutenção das minas, ele a procurou no silêncio. Ao lado de uma fogueirinha apagada, apenas os besouros a lhe entregar um bilhete que dizia:
“Meu amor.
           Se aceito que você me engane, se finjo que não sei, não é porque sou tola, mas para não                 constranger suas escolhas. Se permito que me use para alimentar suas tardes tristes nesse campo minado cinza para, longe de mim, exibir como troféus as violetas que colheu das minhas veias, não é porque sou ingênua. Apenas me parece uma troca justa! Você me dá suas esmolas e eu lhe dou os sonhos que me sobram e nem tenho onde guardar, pois sigo sem parada, sempre a procurar.

Se deixo que encare a mim como um parêntese, um hiato, o dia de folga do que realmente importa na sua existência pálida é apenas porque me basta ser o espelho, o seu lado inverso, o ponto que renega, o que você mais oculta, o nervo,  a parte que te envergonha. Sou aquilo que você nunca conseguirá resgatar do porão, aquela que você guarda no sótão e, pra te agradar, consegue caminhar sem tocar o solo, sem fazer barulho no piso, sem deixar pegadas no chão. Porque eu flutuo e, sendo assim, me vou.
Fui os teus cinco minutos, você a lâmina afiada. Sou o teu segredo, você foi tudo, mas agora que matei suas minas... agora você é nada.
Adeus. Rita de Cássia”

]bw[ 07 julho 2015


*************************************

Moscas Volantes 84
O aniversário


13 de janeiro. Ela acorda, parece uma morta amarelada na cama. Abre os olhos e sussurra: - Hoje ele faz 31 anos.

Rita tem um espetinho de coração de galinha torrado dentro do peito. Está sem casa, mais uma vez, morando de favor em um apartamento onde vivem pessoas que compram coisas, entram e saem apressadas, falam sobre textos acadêmicos, propriedades, atestados de óbito, divisão de bens, heranças e comprovantes curriculares.

Rita foi passar uns tempos nessa casa onde não percebem sua presença. 
Invisível, ela passa pela sala com um copo de água. Está com uma tosse de cachorro e calafrios. Num sofá estampado com flores bege, uma senhora, em tom professoral, explica para um garoto de 21 anos sobre colchões de mola ensacada, liquidificadores e batedeiras. Rita não tem voz porque não tem dinheiro, não está convidada para as conversas sobre as compras e vendas.

Diante do espelho do banheiro ela observa com minúcia sua pele, o contorno do rosto, os olhos inchados, cabelos bonitos despenteados. Ainda existo, murmura.

Sentada na cama, a cabeça entre as mãos, cotovelos sobre os joelhos. As vozes pela casa são uma ladainha de assuntos que não lhe dizem respeito. Uma micro formiga, pra lá e pra cá entre seus pés descalços. Parece bêbada, a formiga. Rita conversa com a minúscula: - Você é maior que eu...

Hoje ele faz 31 anos, não esquece.
Não o vejo acordar há quatro meses e meio. Não o sinto dentro de mim há mais de um ano, ele ainda tinha 29. Não escuto sua voz há mais de 40 dias. Garanto que quando dorme ainda fica com os lábios mornos cor de cereja, levemente inchados e tentadores. Aposto que ainda acorda no meio da madrugada, quase sem pisar no chão com seus pés gigantes flutuantes pelo corredor a caminho de fumar um cigarro e olhar a rua pelo canto da janela, soltando devagar a fumaça, com um prazer lento, pensativo, arrependido não sei do quê, com saudade sei lá de quem. 
Garanto que ainda leva sustos durante o sono e tem as pálpebras doces e macias e as pupilas cheias de segredos, revolvendo-se. Com certeza ainda mexe o pé esquerdo enquanto sonha e dorme com as cuecas largas de estampas clássicas, puídas, macias, compradas por mim, encostando levemente o corpo que deve ter o mesmo gosto.
Garanto que ainda enlaça alguém pelas costas, a mão direita nos seios até quase adormecer e virar-se na cama, de repente, ordenando: - Me abraça.

Hoje ele faz 31 anos. Rita não precisará levar café na cama. Não comprará um presente, não escolherá uma roupa discreta para jantar com os pais dele, nem ligará dizendo eu te amo. Não enviará um e-mail. Não agradecerá porque ele existe enquanto prepara uma bandeja cheia dos manjares só para ver seu sorriso nos olhos e o peito estufando de prazer. Não ficará pasma, estupefata diante de sua beleza, quando ele sair molhado do banho a se olhar no espelho grande do quarto e pedir, com sua voz grave, que ela corte seu cabelo.

13 de janeiro. Final da tarde. A chuva batucando nos vidros da janela. A micro formiga sumiu. Rita mastiga um pedaço de gengibre, usa duas gotas de colírio, pega suas coisas e sai. Ninguém nota, ninguém pergunta, não há quem se despeça, nenhum que se preocupe, qualquer que chame seu nome. Rita vai procurar um lugar, outra história menos triste, familiar e comum, Outras pessoas, sofás menos bege, vozes menos secretas, outros lábios cor de cereja, mornos, noturnos ou não. 

Adeus.


biAh weRTher

*************************************************************

MOSCAS VOLANTES 25


Tarde morna.
Rita está preocupada com o menino cego vegetariano que ficou esquecido na floresta. 

Hoje saio a sua procura, pensa ela arrependida. Sem demora, junta seus apetrechos. Cantil, maçãs, um livro do Ernesto Sabato, o diário, canivete, lanterna e saco de dormir. Bate a porta e sai decidida, segue para o Morro da Gloria, caminhos estreitos, final dos caminhos, mata fechada.

De repente, a clareira. Ela para cansada, senta em uma grande pedra no meio do nada e se distrai com os pássaros. O sol poente encarando Rita. Um vulto se aproxima.
- Oi Rita!
É ele, o ex-marido que gostava de bifes e Rita assassinou quando moravam no bairro Partenon.
- Te matei?, ela pergunta.
- Não completamente, pelo que vejo.
- Quanto tempo faz?
Ele gargalha debochado:
- Tempo? Tu nunca soubeste nada sobre isso.
- Sei sim... Quantas vezes contei os dias? Quantas vezes contei os minutos? Quantas vezes senti a maior felicidade de todas, ao escutar a chave na porta ou a campainha e eu sabia quem era ali do outro lado, quase colado e em um segundo te veria, teus olhos, finalmente sentir teu abraço?
- Nunca fui de abraços, Rita!

Rita fala, fala, aumenta o tom.
- E quantas vezes te esperei e não vieste? Quanto aguardei, tanto me enganei...

Ele ronrona como um gato, acende um cigarro:
- A tua matemática é a das loucas.
- Na nossa aritmética, mais vezes sofri do que fui feliz na eterna espera que foi nossa vida  e a tua morte.
- Meu assassinato, queres dizer? Tu me cortaste à faca, sua bandida!
- Mais vezes chorei sozinha do que te senti dentro de mim. Mais vezes humilhada do que amada. Menos carinho, mais raiva.
- Era isto que eu achava ridículo em ti. A dramaticidade do século passado. Pensei que tinhas mudado.

Pausa. 
Rita se acalma, olha a grama, acompanha as formigas. 

- Sabes, é meu quarto dia aqui na floresta, procurando o menino cego vegetariano. Que venha logo o quinto dia, o sexto, o sétimo, o centésimo, o milésimo... até que eu esqueça a dor e o amor.  Que venha o tempo e leve tudo o que tenho de ti na minha pele, tuas meias da gaveta, a camisa que te dei, o perfume, papéis esquecidos, tua xícara de café com um cachorrinho preto pintado nela...

- Falas como se o passado fosse hoje. Quase sinto pena. Pra ser sincero, nunca gostei do teu café. Muito forte! 

- Que o tempo se encarregue das marcas, te carregue de dentro do meu coração. Dias passem voando, meses, anos, até que eu não lembre a maciez dos teus lábios, o cheiro dos teus cabelos, o tom da tua voz, o calor da tua mão, som do riso, teu corpo dormindo no meu, calor...
- Calor, balbucia ele.
- Até o dia em que eu não lembre do formato dos teus dentes, das mordidas, os defeitos, o perfeito, o teu rosto, o teu nome.

- Qual é o meu nome, Rita? Acaso sabes o meu nome?!
- É isto de dizer adeus soletrando, separando as sílabas, aceitando aos poucos. Esta é uma triste história sem fim, a dor que vira pedra e a gente tem que lapidar. Teu nome é Adeus. Vai te foder, eu tenho mais o que fazer!

Rita se recosta toda torta, deitada no desconforto da pedra gelada na clareira, a lua alta, um morcego sobrevoa seu corpo, ela adormece.

Pela manhã, dói tudo, Rita não consegue se mover. Mexe apenas os olhos, da esquerda para a direita, diverte-se com suas moscas volantes, velhas amigas da retina.

Esquecida do que foi fazer na floresta, Rita espera o sol quente do meio dia, levanta-se alquebrada da pedra e atravessa a clareira, começa o caminho de volta.

- Preciso chegar em casa antes do anoitecer. 

biAh weRTher



MOSCAS VOLANTES 100 

Agosto

Inverno. Lá fora, o vento brinca com os corpos ambulantes empurrando-os pra lá e prá cá, entrando nos orifícios, se enrolando nos pescoços, lambendo as faces até arder, puxando cabelos, apertando, soltando, batendo em ritmo de samba alemão nas janelas de Rita que acorda com uma cratera no peito.

Diante do espelho sem aço com moldura de anjos, ela vê o buraco profundo, quatro centímetros acima do mamilo esquerdo. Nele caberia uma bola de frescobol! As bordas gordas rosáceas, eco fumegante, gelo seco.
Envergonhada, Rita providencia um imperfeito curativo gigante e passa a andar com ele, a espera de que o buraco cicatrizasse.

O tempo voa. Todo o santo dia ela aperta o queixo no peito, afasta a gaze presa com esparadrapo, levanta as sobrancelhas e espia. Nada de novo,  o buraco de Rita não fecha.
No verão, está acostumada, já são íntimos, tanto que guarda coisas nele. Objetos, sentimentos, uma vez escondeu moedas e a corrente de prata com a medalhinha da santa que pisa na cabeça de uma cobra. Apesar do hábito, não suportando mais as roupas fechadas até o pescoço no calor de rachar, Rita reza, pede que a estranha ferida aberta sare logo.

Esta coisa no meu peito é uma prisão, lamenta ela abatida, cansada.

Certa madrugada, deitada em seu quarto, acompanhada apenas pelo nojo e a vergonha que sente do seu buraco, desejando um banho de mar, ela escuta uma voz abafada.  Corre até a janela, abre a cortina. Ninguém.
Subitamente, coloca a mão no peito e sente. É a voz da cratera, vibrante, gradativa, dando discursos sobre assuntos de vida e morte.

Há alguém dentro de mim, sussurra ela.

Minutos tensos de silêncio. Rita escuta a solene voz saindo do buraco do peito a discursar sobre o quanto é ridículo esperarmos pela morte, que cada qual deveria escolher o seu momento de partida, que esta desculpa da hora certa é o oráculo dos covardes e que tudo é relativo.

- Você diz que quer morrer velha, Rita? Mas e quanto àquele dia no porão, quando você fugia de iminentes horrores, pesada, alquebrada como uma velha de cem?

Curiosa, Rita começa a puxar os esparadrapos, tirando o curativo entre ais.  Encarando o buraco pelado no peito nu, ela sussurra que, de fato, já tinha pensado a respeito muitas vezes. Sobre esta merda toda de termos que ficar por aqui depois de já sabermos como é, apenas aguardando o destino, comprando coisas, planejando brigas, arrastando âncoras, quando poderíamos decidir cuidadosamente o momento de nossa morte sem que algum idiota nos taxasse de fracos por não termos a paciência de aguardar os desígnios de um Deus.

- Sim, respondeu a cratera. Sim! Tecnicamente, você deveria ter o direito de matar tudo o que lhe diz respeito, tudo o que não seja da vida alheia. Sabe Rita, diz o buraco em pausado tom de conclusão, você deveria matar-se.

Após longa conversa, incentivada pelo buraco, Rita planeja um suicídio. Mas enquanto escolhe o melhor procedimento, fatigada, adormece e sonha com sombras, borboletas e músicas saindo da deprimida cratera sem nome que agora reside em seu peito.

No outro dia, ao acordar, coloca a mão no seio, íntima, louca pra contar o sonho. Mas nada existe! Seu buraco não está mais lá, tomou chá de sumiço, calou.

Solidão e silêncio. Rita se levanta triste, viúva. No chão, ao lado da cama, encontra o bilhete:
"Rita,
Não quero mais ser tua âncora, tua vergonha, tua náusea. Adeus, amor eterno.
 Sempre tua, Cratera"

Rita, entre arrasada e aliviada, encolhida e triunfante, arrasta os pés pela casa. Cem anos, sussurrando:
- Cratera... Então era esse o nome dela. 

biAhweRTher, 27 de agosto de 2014


MOSCAS VOLANTES 73



De quando Rita acordou insípida e saiu para refrescar a memória. Caminhou sobre o tapete úmido e macio de pétalas lilás.  Os pés não encontravam o chão. Parecia uma viagem de chá de dama da noite. 
Enquanto seu corpo flutuante subia lentamente, passou pelo homem de olhos profundos que caia entre os pingos leves da garoa e ele gritou a plenos pulmões:

- Oi! Você é aquela louca que costurou o umbigo?

Filho da puta, pensou ela, estatelando-se realista na calçada barrenta, escorregadia e viscosa. Caído em pé, na esquina, sem uma manchinha roxa sequer, ele e a velha que varria as calçadas gargalharam num jogral:

- Ninguém caminha nas nuvens! Não há quem possa pairar no mais alto dos céus!

Entre as heras e os flamboyants, surge o menino cego vegetariano. Ele ajuda Rita a levantar-se. A bunda suja da meleca de flores mortas, um pé quebrado, apoiada no menino ela se vai esgueirando o dia ruim através do do antigo jardim:

- Menino, pulamor! Só me acorde quando forem folhas de plátano!

A velha dá um tapa alegre nas costas do homem voador:

- Esse besouro quer acordar sobre folhas de ouro! Escutaste isso?!
 

Os dois rolam de rir.

- Sim, grita Rita! Sim, sou um escaravelho dourado!!! Seus putos infames!


- Putos infames, putos infames!! Arremedam a velha e o homem, já atirados no chão de tanto rir.

Em casa, no bairro Partenon, o menino cego vegetariano frita bolinhos de chuva para Rita.


biAh weRTher - inverno 2014



MOSCAS VOLANTES 2007


É um domingo de abril. 4 da tarde. Noite no Rio.
13 graus negativos e a ressaca do mar invade o calçadão em Copacabana. A maresia gruda na neve e vira lama. Uma mulher escorrega no gelo castanho e cai. Um homem sacode a cabeça, pula por cima da mulher caída e resmunga irônico: - Paulista na praia...

Frio indecente, e eu de biquíni por baixo! - murmura Rita. Na bolsa, ela leva os lingotes de ouro. O vento canta e ela se conforta escutando a própria voz:
- Bom, melhor isto do que a missão da Páscoa. Levar a mala com as bombas nos campos loiros, durante a colheita da macela... Aquilo sim foi foda!!

Feira hippie desmotivada na zona sul, um cara com sotaque boliviano ou algo assim lhe oferece uma touca peruana, um negro lindo tenta lhe vender uma cuíca. A família de índios oferece uma espécie de chocalho com desenhos rotundos.. Rita olha os olhos aborígenes da criança pequena. Pronto, lá se vai o ingresso pro show do Wander Wildner em Botafogo.
14 graus negativos. Começa a nevar mais uma vez. Rita tenta tirar um som dos chocalhos indígenas, mas as mãos estão congeladas. Dedos arroxeados. Puta merda, se ao menos fosse um pau de chuva! Se ao menos aqui fosse Buenos Aires...

Já no Leme, Rita cansa de andar, toma um ônibus. As janelas cerradas, suadas. A seu lado, uma mulher começa a contar coisas da vida, como o filho que trabalha na Uruguaiana e deve estar por aí, morrendo de frii-io. O mais lindo negro vendedor de cuíca está no banco a sua frente mas já não é tão simpático.
Rita desce no Centro e procura uma barraquinha de angu pra aquecer os ossos.  Enquanto espera que a mulher a sirva, um gaúcho pilchado se aproxima e sussurra em seu ouvido:
 - Trouxe a encomenda?
Enquanto entrega a sua bolsa para o homem, ela percebe que é o mesmo cara de gravata que esteve na sua casa, lá no bairro Partenon, em Porto Alegre.
O receptador dos lingotes dá uma risada: Bah, que legal. Esta tua bolsa tem formato de mala de garupa!
 Ele se afasta rápido. O angu quente e mole. Quente por dentro, Rita percebe que não tem onde dormir. Olha ao redor e se lembra de uma igreja do século XVIII na Rua da Alfândega, onde ela passou uma tarde inteira há alguns anos, fugindo do calor.  Que bobagem, só nos filmes as igrejas ficam abertas para os pobres em noites geladas.

Um garoto tremendo de frio, só de camiseta, a aborda e fala algo. O barulho do vento na esquina atrapalha a audição. Ele repete aos gritos apontando um orelhão torto e pichado:
- Tem telefone pra você!!
Ela dá uma moeda pro guri e vai atender. O telefone parece que não funciona, mas uma voz manda ela voltar pra Porto Alegre. Nova missão, diz o homem que, aliás, parece o mesmo de sempre. O da gravata, da pilcha, do Partenon, de Copacabana.
- Caralho! Isto não vai ter fim? - ela grita, correndo na neve pela Cinelândia quase vazia.

15 graus negativos. Desanimados músicos de rua recolhem os instrumentos. Uma baiana oferece espetinhos de camarão. Um cara bêbado usando uma camiseta do Internacional, grita algo sobre força gaúcha enquanto sua namorada usando saia esvoaçante gargalha feliz com uma garrafa na mão. O guri de recado pra quem ela deu a moeda, apanha de dois brigadianos debochados nas escadarias do teatro. Um casal encolhido com sotaque mineiro pergunta se ela sabe onde se pega a barca pra Niterói. 

Vou para a rodoviária, decide ela.

biAh weRTher
Outono de 2007



MOSCAS VOLANTES 11



No outono de 2003, o descolamento de retina de Rita se agravara e ela decidiu passar uns tempos junto ao mar.  Andava metida a fazer previsões e adivinhou que morreria em outubro. Não combinava com seu jeito qualquer pressa em resolver pendências, então apenas descolou-se de todas as verdades.


Dias lentos.  Quase cega, adivinhando o mar atrás do vidro embaçado ela saía tarde da cama e tateava as coisas em torno de si. Deitada na rede da varanda, escutava o céu, as ondas, o amarelo e um pequeno espectro, exíguo enforcado pendurado num poste torto, mergulhado em maresia, pêndulo pra lá e pra cá com seu cheiro ácido que não se ia nem com a brisa densa do oceano. Corpo morto, alma viva em chamas.

Em seu diário ela descrevia nascimentos!
Ininteligíveis garranchos, uma certa expectativa de ressurreição ao utilizar os sinônimos do fim. Naquele infinito, relembrava coisas imensamente lindas, muito mesmo. Reinterpretava símbolos que tinham sido apenas mentiras, e vergonhas que faziam ela cerrar os dentes e franzir as sobrancelhas  e olhar o entorno turvo  como se alguém a estivesse vigiando. Descrevia também o cavalo feio que pastava no grande portão torto da entrada e, mais adiante, um único guarda-sol a abrigar as senhoras gêmeas e gordas que buscavam reencontrar a saúde molhando os joelhos fofos no mar. Rita escrevia que palavras como impotência e razão estão muito desgastadas e andam sempre juntas e separadas.

Havia um certo desânimo e também apreensão, mas no geral ela estava bem.
Acabava mais um dia, outro amanhecia e Rita viciada em pensar sobre o espectro pendurado no poste podre, aquilo que ela entendia como o enforcado dos ocasos.  Se ele vivo estivesse, ficaria com  os olhos úmidos ao escutar os sons do outono. Ele morto, ela cega. Que dupla, pensava se rindo.

Dois meses se passam, estações se cruzam, misturam-se e se renegam rompendo fronteiras invisíveis a emprestar saídas pra quebrar o silêncio. Rita começa a se cansar da calmaria porque ,afinal, estar quase cega por ocasião das moscas volantes era como fazer sexo com estranhos. Pode ser péssimo, mas pode ser emocionante.

Algo a fazia desejar muito o outubro, morrer em outubro! Porque viver é  como receber um poema de um interlocutor anônimo. A impossibilidade da argumentação é muito chata e cansativa. E conviver é um acúmulo de compreensões superficiais e solstícios a rasgar e doer nossa vontade de provar alguma coisa pra um redor que inexiste. O mundo externo não existe, todo o entorno é uma invenção. Tanto que este desenhar e moldar a realidade pela conquista de determinado fim mutilava seus princípios.  

Assim, ao longo dos dias vagarosos, os pequenos livros com capas de motivo infantil trancadas com mínimos cadeados inúteis se multiplicavam de histórias quase reais que ela escrevia desejosa de certezas. Rita esperava que os escritos ininteligíveis de alguém que não enxerga o que escreve, revelassem ao mundo a incrível memória de todos os detalhes que acordavam os segredos mortos de uma só pessoa. Desse modo, ela seria finalmente alguém.

E quando a noite começava a cair e as mariposas a dançar em torno da lâmpada daquele poste onde o pequeno espectro enforcado de cheiro viciante e inesquecível balançava, ela levantava da rede e decidia que um dia, muitos anos depois,  enviaria todos os diários num pacote perfumado de presente e então tudo ficaria esclarecido. Questão de honra, mesmo que prevalecesse a falsa verdade de que ela esteve muito, imensamente iludida na confortável fantasia de que estivera cega, quando na verdade ela via tudo! Rita conversara com o espectro do seu passado, submersa  numa miragem, a falecer no definitivo mês de outubro de uma página virada.

Finalmente, Rita arruma sua mochila, fecha a casinha e sai, resolvida a ser outra. Agora ela quer casar-se e ser uma mulher normal, dessas que faz bife, arroz e batatas fritas.

biAh weRTher 
Verão de 2003



Moscas Volantes 07


Rita abre a janela lateral do apartamento na Rua Fernandes Vieira. Sente o bafo gelado do inverno de 1992 enquanto joga metade do corpo pra fora tentando ver um pedacinho da Redenção, Gigante vulto negro, árvores espessas na névoa que cobre a cidade há uma semana.
A penumbra do quarto tem um tom vermelho. Há uma estufa antiga de alumínio ao lado da cama. Ela sente o frio úmido no apartamento antigo sem água quente. Não toma banho há vários dias.
Depois do episódio em que cegou todos os moradores do prédio onde morava diante do estádio Beira Rio e precisou fugir às pressas juntamente com o menino cego vegetariano, nunca mais residiu em um apartamento tão bom e acolhedor como aquele, apesar dos vizinhos insuportáveis e do síndico caricato de pijama.

Rita tateia as botas pretas sob a cama. Começa a vestir-se.  
- Vou na Lancheria do Parque comer um Xis e ver a Rita Lee.

Desfilando na Osvaldo Aranha ela encontra Pedro, um amigo que se veste como um punk dos anos 80 e adora dizer que se sente em Londres por causa da neblina de Porto Alegre.
Pedro é garoto de programa na José Bonifácio. Tem um filho pequeno que se chama Lucas  e uma namorada, a Luana. Eles moram na Rua João Telles e quando Pedro está com a família não cumprimenta Rita quando se esbarram nos meios dias, meias tardes da cidade cor de laranja.

Rita e Pedro na noite do Bom Fim, solitários em busca de uma cerveja na Lancheria que está quase vazia. Ela para na entrada e corre os olhos por todas as mesas:
- A Rita Lee não está aqui! - comenta chateada.
Pedro a conforta:
- Mas está o Nei Lisboa! Ali na ponta do balcão, ó!

Pedem uma Serramalte e Xis coração.  Pedro está falante e cheio de gestos. Franze as sobrancelhas, estanca no meio das frases, levanta-se subtamente, arregala os olhos. Rita é boa ouvinte e nunca interrompe.

- Noite fantasma, introduz ele apertando os olhos enquanto acendendo o cigarro. Só estou na rua porque tenho um cliente toda a segunda. Os michês dizem que ele é juiz. Parece mesmo! A casa do velho é enorme, cheia de coisas antigas, estátuas e livros. Tu tinha que ver, Rita. Parece um museu! Cheira a mofo, mas é de rico... Velho meio nojento, as vezes choraminga quando eu vou embora, fico até com pena.
O maluco faz sempre o mesmo ritual. Me pega de carro na esquina da Vieira de Castro e vamos pra cobertura dele. Me manda sentar num sofá, me serve uísque e fica fuçando numas coisas, andando pra lá e pra cá, falando no telefone. Parece que fica tomando coragem, sabe? Daí vai ficando quieto, bebe, mexe o gelo, olha a rua, comenta que antes a cidade era muito melhor e coisas do tipo.
Depois de um tempo, fecha as cortinas e vem caminhando em minha direção. Passa a mão nos meus cabelos devagar, se abaixa diante de mim, começa a tirar meus coturnos, tira minhas meias e ADIVINHA?! Lambe meus pés.

Rita olha para Pedro com um ponto de interrogação.
- Sério, continua ele. Esse velho não curte trepar, só lambe o pé e no final chupa os dedos.
É nojento, eu sei... Já me imaginei chutando a cara dele. Mas é meu único cliente fixo. Ganho minha grana e tudo certo.

Pedro se cala pela primeira vez. Os dois ficam ali, no balcão, jogando fumaça de cigarro em direção às frutas coloridas de onde saem os melhores sucos da cidade.

Onze e meia da noite. O Nei Lisboa sai, entram uns gatos pingados. Pedro lastima que precisa ir para sua esquina, pois meia noite é a hora do seu cliente. Saem na rua parada, vão se distanciando do bar, ela olhando pra baixo, ele cheio de gestos. Atrás deles, na Lancheria do Parque, um carro vermelho estaciona e descem 4 pessoas com roupas vintage-excêntricas-boho. Entre elas, a Rita Lee com seu cabelo cor de curupira.

Despedem-se. Pedro atravessa a Osvaldo Aranha. Rita, vai seguindo pela Felipe Camarão, enfiada no seu longo casaco de brechó tigrado marrom com gola de pele bege claro.
- Preciso costurar os buracos nos meus bolsos, pensa ela olhando os próprios passos no bicho da bota.

Um carro de bombeiros quebra o silêncio da quase madrugada. Rita resolve voltar para casa pela Vasco da Gama. Na esquina com a Fernandes Vieira, percebe a balbúrdia causada por um incêndio.
É no seu prédio! Rita lembra que esqueceu a antiga estufa de alumínio ligada muito perto de sua cama.  Fudeu!

Sem casa outra vez, resolve voltar para a Lancheria do Parque. Quando entra no lugar, frequentadores e garçons estão excitados entre dois assuntos: um incêndio consome um prédio do bairro; a Rita Lee esteve ali por cinco minutos e tomou meio conhaque. Depois achou tudo muito chato e pediu que a levassem para o bar do Plaza Hotel.

Sem saber que a madrugada começa a ficar animada, Pedro aguarda o seu cliente juiz que pela primeira vez não aparece. Decepcionado, precisando muito do dinheiro, ele fica na esquina, encostado em uma árvore, esfregando com lascívia o pênis a cada farol que se aproxima.
Breve, um carro passa devagar. Outros michês se insinuam, mas o cliente para ao lado de Pedro, abre o vidro, pergunta o preço, combinam o programa e ele embarca.

O homem é calvo, tem uns 40 anos, é monossilábico e grosseiro. Sem muita introdução, abre as calças enquanto dirige e ordena que Pedro lhe faça sexo oral ali mesmo. Pedro obedece. O homem, excitado, acelera.  Já entrando na Felipe Camarão, Pedro faz o seu serviço, enquanto pensa que o homem está correndo demais.

O incêndio que Rita causou em seu prédio está bastante sério. Um segundo carro de bombeiros se dirige pela Vasco da Gama em plena velocidade.
Finalmente livres do marasmo de uma noite de segunda, as ruas ressuscitam, tomadas por pessoas de pantufas e roupão, sedentas de assunto.

Na esquina com a Felipe Camarão, um carro com um homem calvo e um michê que lhe presta serviços sexuais não para no sinal vermelho e se choca, à toda a velocidade, com o carro de bombeiros que vem pela Vasco da Gama. Começa o vento minuano. Pedro sofre uma terrível morte em serviço enquanto Rita toma outra cerveja e pensa que já é hora sair de Porto Alegre por uns tempos.

Num apartamento na  João Telles, um menino chamado Lucas acorda com um grande estrondo seguido de uma explosão.  Luana, que assistia televisão e bebia um quentão corre para a sacada e vê por entre prédios e bruma as labaredas. A cidade está desperta como num domingo de Brick na manhã vívida de sol da Redenção.

Em meio ao caos dos acontecimentos, a névoa espessa finalmente relaxa, transforma-se numa chuva fina escabelada pelo vento. O inverno está gelando até a alma, comentam os vizinhos esfregando as mãos, prevendo manchetes com suas bocas que desenham a fumaça que sai das entralhas a cada interjeição. 

biAh weRTher 2005 



Moscas Volantes 17
De quando Rita tenta ser uma vendedora de livros.













Os dias ficaram difíceis após a exposição de útero diante de sua casa, sob a garoa. Depois de tudo o que aconteceu naquele dia em que arrastou a cama antiga de ferro para a rua, finalmente veio o mês de abril. Escondida atrás das cortinas, Rita temia que algum agente aparecesse lhe coagindo a alguma nova e perigosa missão durante a colheita da macela. Isso de incumbências de guerra ela não mais suportaria.
Sim, tempos deveras espinhosos. Estava na hora de um novo chá de sumiço. Se tudo der errado mais uma vez, o jeito será fugir pro Japão!! - murmurou enquanto fazia as malas.

Anos a fio.

Vivendo ocasionalmente como uma mulher de verdade em uma casa simples no bairro Partenon, ela acaba por assassinar o marido e foge para o final dos anos 1970, interior de Sapucaia do Sul. Arranja um trabalho como vendedora de livros e tenta refazer sua vida.
              
Oferecer livros era tarefa árdua para alguém de poucas falas como Rita. Todos os dias, as 9 da manhã, ela e mais 9 pessoas entravam numa kombi e o motorista os levava para bairros distantes onde tinham que bater nas casas e oferecer enciclopédias até as 5 da tarde. Em 10 dias, Rita não conseguira vender uma sequer, mas a firma lhe pagava o almoço.

Fogo de janeiro, mais um lerdo dia de trabalho. As casas pequenas, monótonas, iguais, apertadas em ínfimos lotes nas ruas intermináveis. Árvores? Nenhuma. Os pequenos jardins ressequidos aprisionados em muros baixos, chão batido, tontura, boca seca, moscas volantes, uma cigarra distante. Rita estanca o passo incerto diante de uma casinha. Não pretende oferecer livros, mas pedir um copo de água. Quem sabe alguém até lhe oferece um pouco de Q-suco de cereja, bem vermelho, cheio de gelo.

Tomando coragem, no meio da rua, catálogos embaixo do braço, ela fica indecisa entre largar seus apetrechos de vendedora de livros no chão de terra e bater palmas ou ir entrando pelo pequeno portão.
De repente,  percebe um vulto por detrás da cortina, na janela apertada.
Sol do meio dia nos olhos, penumbra dentro da casinha, uma mulher velha, cor de rosa, empurra languidamente a cortina. Seus grandes seios flácidos estão nus, os cabelos crespos são altos de cor acinzentada, a mão a acariciar a cortina, olhos libertinos parados em Rita.

Hora estagnada. Por detrás da senhora pelada, Rita percebe um velho pálido sem camisa, pelos brancos no peito suado. Ele coloca os braços envolta do corpo dela e tateia os seios caídos.
Fixas no espetáculo, suas retinas vão acostumando. 

Nuvens repentinas encobrem o sol, começa a ventar. O homem exibicionista da janela estende o braço e apanha um pote gigante de geléia de uva. Com os braços em torno da velha, encostando seu rosto no dela, ele abre o pote com vagar, enche a mão e começa a lambuzar a geléia de uva nos seios da velha, que encara Rita com um sorriso lascivo, apertando os pequenos olhos enrugados. Desconcertada, Rita admira a cena enquanto, embaixo de seus pés, sente que a terra treme levemente, abrindo pequenos veios.       

O vento está furioso, sacode o corpo delgado de Rita enquanto enormes pingos repentinos de chuva castigam sua pele, desintegram-se na terra seca. O buraco no chão vai se abrindo, abrindo, aumentando, crescendo, enchendo-se de água barrenta até que Rita escorre. Rita cai no buraco e vai parar no Japão.

biAh weRTher 2009
                


               



MOSCAS VOLANTES 63
Sobre o reencontro e o umbigo.

Dez anos se passaram. Rita já tinha andado pelo planeta inteiro e outros mundos e nada!
Finalmente, voltando à mesma floresta de outros tempos incríveis, encontrou o menino cego vegetariano, amarrado com cordas podres a um tronco cheio de musgos.
Ele notou sua presença e voltou a cabeça que estava caída havia anos. Sentindo coisas que não conseguira em tantas aventuras, ela arrastou sua corrente em direção a ele e mil lembranças jorraram de seus olhos culpados.

Enquanto o desamarrava, sôfrega como nunca fora, ele a enlaçou com as pernas e estranhou a grande bola de ferro cor de ferrugem que ela agora trazia presa na corrente em seu tornozelo. Rita voltou ao seu normal sem sal e sacudiu a cabeça afirmativamente:
- É isso mesmo, a gravidade!  Agora é assim, se soltar esse peso do meu tornozelo, meu corpo se perderá como um balão de gás no céu. E se assim for, quem vai te salvar das minhas distrações, quando esquecê-lo preso por  dez anos ao tronco de uma árvore podre e cheia de musgo?

O menino continuava paciente como antigamente:
- Se sobrevivi, Rita, e se sobrevivo é porque você se distrai de mim. Mas é aí que você envelhece e eu sigo menino. Se eu não estivesse aqui, esquecido na mesma floresta de sempre, você não teria feito essa tolice de acorrentar-se numa inútil bola de ferro enferrujada.
E não me diga que, sem ela, você vai cair da Terra a flutuar como um balão no mais alto e negro infinito. A gravidade sempre vence, Rita. Sim, no meu caso, cresci por dentro e sou um menino por fora, preso aqui, apodrecido na umidade. Mas isso são as contradições e sobre elas ainda não pensei.
A propósito, você não vai me levar daqui?

*
Já em casa, por volta das 5 da manhã, Rita assistia o tele-curso na televisão. Um ator que já não era famoso falava sobre as crases. Rita preferia agudos. Zapeou para um canal de música gospel.
O dia logo chegaria e havia um frio na barriga, a sensação de dormência nas pernas e uma vontade de mudar de ares.
Rita saiu do quarto, andou como se fosse uma pessoa muito velha, arrastando os minutos pelo corredor. Pegou a velha caixinha de costura, toda colada com fotos da infância de outras pessoas. A mesma caixa que ela encontrara na lixeira do prédio na madruga em que fora junto ao namorado procurar o dedo do pé, amputado sem querer na pressa de cortar as unhas e sair para dançar.

Rita abriu a caixinha e só encontrou linha vermelha. Escolheu uma agulha em formato de meia lua. Ela pegou a linha vermelha, colocou no buraco da agulha de meia lua, sentou no sofá branco puído e levantou a camisola. Rita lambeu o dedo e passou em torno do umbigo, pra umedecer o local. Depois, com vagar, começou a costurar delicadamente.

Dor aguda como a voz da cantora na televisão do quarto, como o primeiro raio de sol no chão da sala, como seus grunhidos baixinhos a cada ponto. E assim foi. Rita a costurar até desaparecer seu umbigo.


biAh weRTher, 2007


.

MOSCAS VOLANTES sem número
De quando Rita foi apenas uma qualquer.

Tarde quente. Fria, Rita penteia as crinas dos cavalos confinados no banheiro dos fundos. As moscas volantes estão em festa diante dos olhos da égua. O menino cego vegetariano lhe alcança os apetrechos. A escova, um pente de madeira, ampola de vitamina A, o óleo de amêndoas doces para acrescentar o brilho.
O menino e suas questões:
- Rita, como são os outros por dentro?
Ela para, demora afagando o potro e sussurra, sacudindo a cabeça, sobre nunca ter pensado a respeito disso.
- Pois eu penso muito, diz ele. Penso sobre as cores das partes, os caminhos, entende?
Rita escuta.
- Posso ver como tu é por dentro? Pergunta ele.
Rita é fácil, concorda, deixa pela metade os penteados dos cavalos e vai para a cozinha seguindo o menino. Ele abre a gaveta. pega a faca e entrega pra Rita:
- Afia esta pra mim.
Ela obedece, afia o fio com um primor invejável. Depois fica pelada e deita na mesa da cozinha, cruza as mãos sobre o peito e se distrai com os voos rasantes de suas moscas volantes. Rita aguarda bem tranquila.
O menino fala pelos cotovelos.
Discorre sobre as entranhas de cada ser humano na face da Terra. Que uns são brilhantes, outros púrpura, alguns marrons e que todos tem mundos exóticos e pessoinhas por dentro. Enquanto discursa ele tenta começar pelo umbigo, mas ela conta que, nos anos em que ele esteve enraizado na floresta, ela o costurou numa certa madrugada, costurou o umbigo para nunca mais fazer parte do mundo.
Ele tenta começar pelo coração, mas ela explica que esse se fora junto com o buraco falante suicida e triste que ela teve por meses no peito.
Já sem paciência o menino escorrega a mão entre os pelos e vai molhando os dedos pensando em começar pelo útero, mas ele mesmo lembra do dia de garoa quando da exposição de útero que eles produziram e do homem que chegou no final e meteu a mão dentro dela pra procurar a medalha da santa que pisava numa cobra e que o tal homem extraiu algumas partes de Rita durante a longa busca.
- Desculpe, menino, restam poucas entradas e quase já nem tenho saídas.
Ele responde que tudo bem, inventará uma alternativa. Então começa a apalpar os cantos de Rita, investigando, investigando. Até que chega na nuca, vai para o pescoço, o queixo, os lábios. O menino coloca os dedos na sua boca e vai abrindo, abrindo e ele vai vendo dentro e sobe sobre Rita e vai entrando, entrando nela pela garganta e abrindo caminho com a faca.
Escorregando, assim, pra dentro dela, ele, lá dentro surpreso, chega a uma conclusão sobre como ela é nas entranhas:
- Rita, eu sou cego! Você, para mim, é qualquer uma por dentro.
]bw[

3 comentários: