quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Aranha e o coliseu das moscas

Quando eramos pequenos, os livros de história da escola falavam sobre a escravidão no Brasil como um dado, um momento econômico, uma situação quase natural, "cultura" que teve um fim (teve?) porque uma princesinha boazinha assim o quis, um ponto para decorar e tentar ir bem na prova. Sobre as tragédias que viveram nossos índios, era também assim.
Nem as aulas de literatura resolviam muito a desinformação e um despertar de senso crítico, porque já estava na moda essa mania de achar a leitura um saco.
Sempre fui muito esquecida, mas não lembro de uma escola voltada para a sensibilização das crianças a respeito das vergonhas que nossos entes consideravam normais e necessárias (como é que os latifundiários farrapos iriam manter seus honestos negócios se acontecesse a libertação dos escravos?), as dores de nossos outros entes, idênticas as que hoje vivem ainda tantos indivíduos humanos e não humanos. Não precisa ler tantos jornais pra saber que há famílias, mulheres, crianças e animais escravos nas grandes cidades e em zonas rurais.
Ok, ainda há quem pense que os livros de escola são textos acadêmicos e precisam ser frios. Tal pensamento tradicional pode operar desastres.
Por tudo isso, para uma criança crescer vendo a vida real por dentro, sem artifícios, desculpas, perfumes e mentiras, dependíamos de pais inteligentes e outros modelos e informações menos genéricas.
Quando tínhamos sorte de ter pais curiosos, responsáveis, corajosos e atentos, tínhamos informação ao nosso redor. Livros, filmes ficcionais e até documentários (coisa rara uma família que assiste documentários, mas acontece).
A televisão até tentava ser boazinha e, pra quem era muiiito preguiçoso, as novelas eram um bom jeito de talvez até perceber que a escravidão não foi, ela é e será até que a sociedade repense seus conceitos velados. O problema é que, na mesma tv que falava mal da escravidão e assegurava o seu fim graças à tal princesa e blábláblá, os atores negros eram sempre os empregados.
O que quero dizer é que agora que nós crescemos, muitos de nós se tornaram pessoas com falha de caráter, com um vazio que a falta de informação e a educação covarde e frágil lhes deixou como marca indelével. Falta-lhes empatia, senso de justiça, compreensão sobre coletividade e verdade.
A escravidão não acabou, apenas aprimorou-se. Já se sabe que não há animais humanos livres e, por nossas escolhas, já não há tampouco animais não humanos livres. Engana-se o branco debochado que se considera superior, pois é mais prisioneiro que os prisioneiros que o servem. Mas bem, isso todo mundo já sabe, certo?
A respeito da história e detalhes de como viviam os escravos e da traição que sofreram, por exemplo, os Lanceiros Negros aqui no RS, onde vivo e entendo como o lugar mais assumida e orgulhosamente racista do país, era raro algum professor aprofundar-se. Até porque talvez nem eles soubessem mais do que a leitura fria dos tópicos e resumos. Porém, tanto a ficção quanto os relatos reais, documentais, orais dão conta de que alguns escravos, seres humanos com personalidade própria e não ferramentas, optavam por trabalhar na casa grande, dedurar outros negros, curvar-se, puxar o saco. Atenção, não vejo sentido em culpá-los. Inclusive, pelo tipo de gente que nos tornamos, acho que grande parte da minha geração faria o mesmo. Passos miúdos medrosos, reverência, engolindo sapo, traindo irmãos para garantir uma roupa limpa.
Quero dizer com isso, que não me surpreendo quando alguns conterrâneos se atrevem a alegar que o Pelé é um bom exemplo de bom negro, já que ele diz que está errado revoltar-se.
Bem, não preciso dizer mais nada aos racistas e escravistas, a não ser que vocês são ignorantes, cretinos e psicopatas.

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