sábado, 17 de dezembro de 2016

Porque o meu festival nunca foi exclusivo para exibição de filmes?

Primeiramente por que festivais de cinema se assumem "competitivos" e não me sinto bem em festividades onde as pessoas se encontram, sorriem, bebem juntas, mas no fundo querem provar que são melhores umas que as outras.
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Trabalhar com cinema, aqui em casa, é diferente do jeito como todos os meus amigos cineastas trabalham. Eu acreditava que era pelo fato de eu fazer artes hibridas e, para muitos especialistas em cinema, isto é algo que transita entre a traição e o amadorismo.
Porém, com o passar dos anos acabei aceitando o fato de que a minha desobediência resistente, a minha falta de pressa e meu gosto pela falta de foco, não me trouxe tantos inimigos assim. Gerou fofocas, batalhas e, sim, pelo menos um inimigo que quer até hoje me ver morta (chegou a me dizer isso na cara), alguns invejosos e meia dúzia de fofoqueiros que já desistiram de torcer pela minha derrota, pois a essas alturas já se viu que o meu jeito de viver e laborar não dá espaço para derrotas já que eu as incorporo no processo e as transformo.
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Mas a verdade é que desde o primeiro dia em que apareci no mundo dos cineastas com um ponto de interrogação na ponta da língua, a maioria foi com a minha cara ou, se não foi, aprendeu a me aceitar e relaxou.
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O que mais me torna inconveniente em alguns momentos, insuportável em outros e fora da turma sempre é o fato de o cinema brasileiro ter uma história baseada no machismo.
Na cidade onde moro isto ainda é muito presente, mas de modo geral noto que ainda não se confronta muito esse fato.
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Por exemplo, já vi dezenas de vezes meninas e meninos do cinema beijando os pés da Helena Ignez não por ela ser quem é, por ter transcendido a objetificação, mas por ter sido "musa" do Cinema Novo e do Cinema Marginal, esposa de "nada menos" que três monstros sagrados do cinema nacional: Glauber Rocha, Júlio Bressane e Rogério Sganzerla.
Preciso confessar que o mal estar que me causa a designação "musa" transcende o estômago e vai até a minha aura.
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Cinema, para mim, desde o primeiro momento em que peguei em uma câmera ainda muito jovem, já querendo rasgar o roteiro, é um lugar onde as pessoas envolvidas vivem. É um planeta em outro tempo-espaço, paralelo.
Neste planeta existem os mais ricos e os mais pobres, os bem comportados e os subversivos, os livre e os comprometidos, os que repetem modelos e os que não os aceitam.
Mas é um universo paralelo cheio de códigos e dogmas internos que alguns, entre eles eu, não respeitam.
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Quando dirijo um festival que mistura o cinema com outras artes e tira ele da sala e busca filmes experimentadores, sinto que alguns colegas me olham como se eu estivesse desconstruindo o templo, usando o banheiro com a porta aberta. Pois se a competição não é o princípio, os segredos são desnecessários.
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O hibridismo expõe, funciona como uma suruba criativa, inventiva aumentando nossas possibilidades de viver a vida real. Para alguns é imoral, para outros é libertação, objetivo, missão.
Em todas as minhas viagens de cinema eu filmava uma cena dos passos das pessoas comuns no lado de fora das salas, encontros, premiações, debates... Mais tarde, estudando no Instituto de Artes da UFRGS eu fazia o mesmo, ficava na frente daquele prédio filmando as pessoas que por ali passavam sem precisar de nós, sem interesse em saber qual tipo de atividade acontece dentro daquele prédio...
Ali fora do nosso limbo, dezenas, centenas, milhares de pessoas passam pra lá e prá cá vivendo suas vidas, correndo seus caminhos sem dar conta da nossa existência vaidosa, sobrevivendo sem precisarem de nós.
Chegar a essas pessoas sem ser marionete das grandes corporações talvez seja possível se nos sentirmos parte, como o menino empacotador, tal qual a secretária do dentista ou o dono da padaria. E algo me diz que deixar de lado essa necessidade de definir qual arte ou artista é melhor ou se expressa de modo mais certo, mostrar a intimidade da arte com processos abertos e vivenciar a multi-expressão talvez sejam ótimos caminhos.
Agora, se você acredita que um cineasta não é um artista, possivelmente não chegou até o final do texto.
Um beijo.
biAhweRTher

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